Eu não tenho culpa
não fui eu quem fez as coisas ficarem assim
desse jeito que não entendo
que não entenderia nunca
você também não tem culpa
vou chamá-lo de você
porque ninguém nunca ficará sabendo
nem era preciso, a culpa é de todos
e não é de ninguém
não sei quem foi que fez o mundo assim
horrível às vezes...
quando ainda valia a pena
eu ficava horas pensando
que podia voltar tudo a ser como antes
eu ia como sempre sair caminhando
sem saber aonde ir
sem saber onde parar
onde pôr as mãos, os olhos
e ia me dar aquela coisa escura no coração
e eu ia chorar, chorar durante muito tempo
sem ninguém ver...
é verdade
tenho pena de mim
e sou fraca
nunca antes uma coisa nem ninguém
me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora
mas ao menos nesse agora
eu quero ser como eu sou e como nunca fui
e nunca seria
se continuasse ...
me entende
eu não conseguiria
não você não me entendeu nem entende
nem entenderia
você nem sequer soube, sabe
saberá amanhã
você vai ler esta carta e nem vai saber
que você poderia ser você mesmo
e ainda que soubesse
você não poderia fazer nada
nem ninguém
eu já não acredito nessas coisas
por isso eu não te disse...
compreende
talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi
não sei no momento em que a gente vê
uma coisa ela se torna irreversível
inconfundível
porque há um momento do irremediável
como existem os momentos anteriores de passar adiante
tentando arrancar o espinho da carne
há o momento em que o irremediável se torna tangível
eu sei disso...
não queria demonstrar que li algumas coisas
e até aprendi a lidar um pouco com as palavras
apesar de que a gente nunca aprende
mas aprende dentro dos limites do possível, acho
não quero me valorizar
não sou nada e agora sei disso
eu só queria ter tido uma vida completa
mas não quero falar nisso...
podia falar de quando te vi pela primeira vez
sem jeito
de repente te vi assim
como se não fosse ver nunca mais
e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais
porque de repente vi outra vez
e outra
e outra
e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces ...
não me importa o lugar-comum
dizer o que outros já complexos em cima de mim
problemas, introjeções, fugas, neuroses, recalques, traumas
e eu só queria uma coisa limpa
verde como uma folha de malva
aquela mesmo que existiu
ao que disseram não tenho mais nada a resguardar...
um momento à beira de não ser
eu não sou mais
tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava
tudo caía num espaço enorme
amar esse espaço enorme entre mim e você
mas não se culpe
deixa eu falar como se você não soubesse
não se culpe por favor
não se culpe ainda ...
que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos
eu não atenderia
eu me recuso a ser salvo ...
e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés
aquela noite eu ainda esperava
quase digo sem querer teu nome
digo ou escrevo
não tem importância
vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado ...
é estranho me desculpa
saí correndo no parque
e me joguei na água gelada de agosto
invadi sem ter direito a névoa dos canteiros
destaquei meu corpo contra a madrugada
esmaguei flores não nascidas
apertei meu peito na laje fria do cimento
a névoa e eu
o parque e eu
a madrugada e eu
costurado na noite
cerzido no escuro
porque me dissolvia
à medida em que me integrava no ser do parque
e me desintegrava de mim mesmo
preenchendo espaços
aqueles enormes
espaços brancos
terrivelmente brancos ...
... e você não teve olhos para ver que o parque era
você a água
você a névoa
você a madrugada
você as flores
você os canteiros
você o cimento ...
você não teve mãos para mim
só aquela ternura distraída
a mesma dos edifícios e das ruas
mas eles me desesperavam
você me desesperava
eu não quero falar nelas
mas elas estão na minha cabeça
como os meus cabelos
e as vejo a todo instante ...
e eu ridícula queria ter uma vida completa
você não se parecia com ninguém
tinha os olhos de mangaba madura
os mesmos que tive um dia
e perdi não sei onde
não sei por que
e de repente voltavam em você
nos cabelos finos muito finos
finos como cabelos finos
'minto que me bastaria tocá-los
para que tudo fosse outra vez
mas não toquei ...
e o vento
um vento que batia nos ciprestes
e me levava embora
por sobre os telhados, as cisternas, as varandas,
os sobrados, os porões, os jardins, o campo,
o campo e o lago e a fazenda e o mar
eu quero me chamar Mar
você dizia e ria
e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ...
ah mar amar
e você dizia coisas tolas
como quando o vento bater no trigo
te lembrarás da cor dos meus cabelos...
você não vai muito além desses príncipes pequenos
suas palavras todas
não tenho culpa
não tenho
culpa eram de quem pedia cativa-me
eu já não conseguiria
bem lento eu não conseguiria
eu não sei mais inventar
como esta a minha maneira de ser
um momento à beira de não mais ser
não me permite um invento
que seja apenas um entrecaminho para um outro...
mas me recuso a continuar
ninguém sofrerá por mim sem mim
teus meus nossos
desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves
os teus porque não sabes
sim sim eu tenho culpa
talvez eu pudesse, eu soubesse,
eu devesse, eu quisesse
quem sabe...
mas não chore nem compreenda
te digo enfim que o silêncio e o que sobra
solo resta el silêncio
un ondulado silêncio
os espaço de tempo a nos situar fragmentados
no tempoespaçoagora ...
não sei onde fiquei
onde estive, onde andei
nada compreendi desta travessia cega
a mesma névoa do parque outra vez
a mesma dor de não ser visto ...
e rindo não não quebres nunca os teus invólucros
as tuas formas passam lentamente
a mão do anel que eu te dei
e era vidro
depois ri
ri muito ri
bêbado ri louco
ri ate te surpreenderes com a tua não dor
até te surpreenderes com não me ver nunca mais
e com a desimportância absoluta de não me ver nunca mais
e com minha mão nos teus cabelos
distante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.
não fui eu quem fez as coisas ficarem assim
desse jeito que não entendo
que não entenderia nunca
você também não tem culpa
vou chamá-lo de você
porque ninguém nunca ficará sabendo
nem era preciso, a culpa é de todos
e não é de ninguém
não sei quem foi que fez o mundo assim
horrível às vezes...
quando ainda valia a pena
eu ficava horas pensando
que podia voltar tudo a ser como antes
eu ia como sempre sair caminhando
sem saber aonde ir
sem saber onde parar
onde pôr as mãos, os olhos
e ia me dar aquela coisa escura no coração
e eu ia chorar, chorar durante muito tempo
sem ninguém ver...
é verdade
tenho pena de mim
e sou fraca
nunca antes uma coisa nem ninguém
me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora
mas ao menos nesse agora
eu quero ser como eu sou e como nunca fui
e nunca seria
se continuasse ...
me entende
eu não conseguiria
não você não me entendeu nem entende
nem entenderia
você nem sequer soube, sabe
saberá amanhã
você vai ler esta carta e nem vai saber
que você poderia ser você mesmo
e ainda que soubesse
você não poderia fazer nada
nem ninguém
eu já não acredito nessas coisas
por isso eu não te disse...
compreende
talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi
não sei no momento em que a gente vê
uma coisa ela se torna irreversível
inconfundível
porque há um momento do irremediável
como existem os momentos anteriores de passar adiante
tentando arrancar o espinho da carne
há o momento em que o irremediável se torna tangível
eu sei disso...
não queria demonstrar que li algumas coisas
e até aprendi a lidar um pouco com as palavras
apesar de que a gente nunca aprende
mas aprende dentro dos limites do possível, acho
não quero me valorizar
não sou nada e agora sei disso
eu só queria ter tido uma vida completa
mas não quero falar nisso...
podia falar de quando te vi pela primeira vez
sem jeito
de repente te vi assim
como se não fosse ver nunca mais
e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais
porque de repente vi outra vez
e outra
e outra
e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces ...
não me importa o lugar-comum
dizer o que outros já complexos em cima de mim
problemas, introjeções, fugas, neuroses, recalques, traumas
e eu só queria uma coisa limpa
verde como uma folha de malva
aquela mesmo que existiu
ao que disseram não tenho mais nada a resguardar...
um momento à beira de não ser
eu não sou mais
tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava
tudo caía num espaço enorme
amar esse espaço enorme entre mim e você
mas não se culpe
deixa eu falar como se você não soubesse
não se culpe por favor
não se culpe ainda ...
que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos
eu não atenderia
eu me recuso a ser salvo ...
e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés
aquela noite eu ainda esperava
quase digo sem querer teu nome
digo ou escrevo
não tem importância
vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado ...
é estranho me desculpa
saí correndo no parque
e me joguei na água gelada de agosto
invadi sem ter direito a névoa dos canteiros
destaquei meu corpo contra a madrugada
esmaguei flores não nascidas
apertei meu peito na laje fria do cimento
a névoa e eu
o parque e eu
a madrugada e eu
costurado na noite
cerzido no escuro
porque me dissolvia
à medida em que me integrava no ser do parque
e me desintegrava de mim mesmo
preenchendo espaços
aqueles enormes
espaços brancos
terrivelmente brancos ...
... e você não teve olhos para ver que o parque era
você a água
você a névoa
você a madrugada
você as flores
você os canteiros
você o cimento ...
você não teve mãos para mim
só aquela ternura distraída
a mesma dos edifícios e das ruas
mas eles me desesperavam
você me desesperava
eu não quero falar nelas
mas elas estão na minha cabeça
como os meus cabelos
e as vejo a todo instante ...
e eu ridícula queria ter uma vida completa
você não se parecia com ninguém
tinha os olhos de mangaba madura
os mesmos que tive um dia
e perdi não sei onde
não sei por que
e de repente voltavam em você
nos cabelos finos muito finos
finos como cabelos finos
'minto que me bastaria tocá-los
para que tudo fosse outra vez
mas não toquei ...
e o vento
um vento que batia nos ciprestes
e me levava embora
por sobre os telhados, as cisternas, as varandas,
os sobrados, os porões, os jardins, o campo,
o campo e o lago e a fazenda e o mar
eu quero me chamar Mar
você dizia e ria
e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ...
ah mar amar
e você dizia coisas tolas
como quando o vento bater no trigo
te lembrarás da cor dos meus cabelos...
você não vai muito além desses príncipes pequenos
suas palavras todas
não tenho culpa
não tenho
culpa eram de quem pedia cativa-me
eu já não conseguiria
bem lento eu não conseguiria
eu não sei mais inventar
como esta a minha maneira de ser
um momento à beira de não mais ser
não me permite um invento
que seja apenas um entrecaminho para um outro...
mas me recuso a continuar
ninguém sofrerá por mim sem mim
teus meus nossos
desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves
os teus porque não sabes
sim sim eu tenho culpa
talvez eu pudesse, eu soubesse,
eu devesse, eu quisesse
quem sabe...
mas não chore nem compreenda
te digo enfim que o silêncio e o que sobra
solo resta el silêncio
un ondulado silêncio
os espaço de tempo a nos situar fragmentados
no tempoespaçoagora ...
não sei onde fiquei
onde estive, onde andei
nada compreendi desta travessia cega
a mesma névoa do parque outra vez
a mesma dor de não ser visto ...
e rindo não não quebres nunca os teus invólucros
as tuas formas passam lentamente
a mão do anel que eu te dei
e era vidro
depois ri
ri muito ri
bêbado ri louco
ri ate te surpreenderes com a tua não dor
até te surpreenderes com não me ver nunca mais
e com a desimportância absoluta de não me ver nunca mais
e com minha mão nos teus cabelos
distante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.
* adaptado de Caio Fernando Abreu " A QUEM INTERESSAR POSSA"
Nenhum comentário:
Postar um comentário