Eu sou antes como um desses bichos a quem arrancam as entranhas e meteram estopa de ilusão corpo a dentro para que pareçam vivos, e até alertas.
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Vinte anos depois: Diante do Lago Baikal II
Vejo a água correndo, já são cinco horas da tarde. Acompanho o pequeno riacho, até ele encontrar-se com um dos lugares mais bonitos da terra: o lago Baikal, na Sibéria. “Um rio nunca passa duas vezes pelo mesmo lugar” diz um filósofo. “A vida é como um rio”, diz outro filósofo, e chegamos a conclusão que esta é a metáfora mais próxima do significado da vida.
Mas hoje acabo de descobrir algo diferente: existe um rio dentro do rio; é ele que mostra o caminho a seguir, é a alma das águas que estão ao meu lado, nesta pequena aldeia onde ainda podemos ver um poço, e os habitantes que chegam até o lugar para pegar água. Há quanto tempo não vejo um poço de verdade, que dá de beber a todo um vilarejo?
Contemplo de novo o rio, procuro ser como ele, e vejo as lições que está me ensinando agora:
A] Sempre estamos diante da primeira vez. Enquanto nos movimentamos entre a nossa nascente (o nascimento) ao nosso destino (morte), as paisagens serão sempre novas. Devemos encarar todas estas novidades com alegria, e não com medo – porque é inútil temer o que não se pode evitar. Um rio não deixa de correr jamais.
B] Em um vale, andamos mais devagar. Quando tudo à nossa volta fica mais fácil, as águas se acalmam, nos tornamos mais amplos, mais largos, mais generosos.
C] Nossas margens sempre são férteis. A vegetação só nasce onde existe água. Quem entra em contato conosco, precisa entender que estamos ali para dar de beber a quem tem sede.
D] As pedras precisam ser contornadas. Evidente que a água é mais forte que o granito, mas para isso é preciso tempo. Não adianta deixar-se dominar por obstáculos mais fortes, ou tentar bater-se contra eles; gastaremos energia a toa. O melhor é entender por onde se encontra a saída, e seguir adiante.
E] As depressões necessitam paciência. De repente o rio entra em uma espécie de buraco, e pára de correr com a alegria de antes. Nestes momentos, a única maneira de sair é contar com a ajuda do tempo. Quando chegar o momento certo, a depressão se enche, e a água pode seguir adiante. No lugar do buraco feio e sem vida, agora existe um lago que outros podem contemplar com alegria.
F] Somos únicos. Nascemos em um lugar que estava destinado para nós, que nos manterá sempre alimentados de água o suficiente para que, diante de obstáculos ou depressões, possamos ter a paciência ou a força necessárias para seguir adiante. Começamos nosso curso de maneira suave, frágil, onde até mesmo uma simples folha pode parar nosso curso. Entretanto, como respeitamos o mistério da fonte que nos gerou, e confiamos em sua Eterna sabedoria, aos poucos vamos ganhando tudo que nos é necessário para percorrer nosso caminho.
G] Embora sejamos únicos, em breve seremos muitos. A medida que caminhamos, as águas de outras nascentes se aproximam, porque aquele é o melhor caminho a seguir. Então já não somos apenas um, mas muitos – e há um momento em que nos sentimos perdidos. Entretanto, como diz a Bíblia, “todos os rios correm para o mar”. É impossível permanecer em nossa solidão, por mais romântica que ela possa parecer. Quando aceitamos o inevitável encontro com outras nascentes, terminamos por entender que isso nos faz muito mais fortes, contornamos os obstáculos ou preenchemos as depressões em muito menos tempo, e com muito mais facilidade.
H] Somos um meio de transporte. De folhas, de barcos, de idéias. Que nossas águas sejam sempre generosas, que possamos sempre levar adiante todas as coisas ou pessoas que precisarem de nossa ajuda.
I] Somos uma fonte de inspiração. E portanto, deixemos para um poeta brasileiro, Manuel Bandeira, as palavras finais:
“Ser como um rio que flui
Silencioso no meio da noite
Não temer as trevas da noite
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se o céu se enche de nuvens
Como o rio, as nuvens são água;
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”
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