quinta-feira, 31 de maio de 2007


A tentação do prazer. A tentação é comer direto da fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é nunca mais querer para de comer, e comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma.
Eu nunca mais repousaria: Eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Eu era agora pior do que eu mesma!
Nunca mais repousaria: roubei o cavalo de caçada do rei do sabá. Se adormeço por um instante, o eco de um relincho me desperta. E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo mas no silêncio o ginete me arrepia. Não diz nada mas respira. Todos os dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o primeiro tambor na montanha fará a noite, sei que o terceiro já me terá envolvido na trovoada.
E ao quinto tambor já estarei inconsciente na minha cobiça.. Até que de madrugada, aos primeiros tambores levíssimos, me encontrarei sem saber como junto a um regato, sem jamais saber o que fiz, ao lado da enorme e cansada cabeça do cavalo.
Cansada de quê? Que fizemos nós, os que trotam no inferno da alegria? Há dois séculos que eu não vou. Da última vez que desci da sela enfeitada, era tão grande minha tristeza humana que jurei nunca mais. Converso, arrumo casa, sorrio, mas sei que o trote está em mim. Sinto falta como quem morre. Não posso mais deixar de ir.
E sei que de noite, quando ele me chamar, irei. Quero que ainda uma vez o cavalo me conduza ao meu pensamento. Foi com ele que aprendi. Se é pensamento essa hora de latidos. Os cães latem, começo a entristecer porque sei, com o olho já resplandecendo, que irei. Quando de noite ele me chama para o inferno, eu vou. Desço como um gato pelos telhados. ninguém sabe, ninguém vê. Apresento-me no escuro, muda em fulgor. Correm atrás de nós cinquenta e três flautas, à nossa frente uma clarineta nos alumia. E nada mais me é dado saber.
De madrugada eu nos verei exaustos junto ao regato, sem saber que crimes cometemos até chegar a madrugada. Na minha boca e nas suas patas a marca de sangue. O que imolamos? De madrugada estarei de pé ao lado do guinete mudo, com os primeiros sinos de uma igreja escorrendo pelos regato, com o resto das flautas ainda escorrendo pelos cabelos.


Clarice Lispector
A paixão segundo GH

Um comentário:

Silvia /('.')\ disse...

é fantástico e extremamente lindo este livro dela, e para ela mesmo foi dificil escreve-lo, eu já li várias vezes na minha adolescência e não me lembro muito,mas se o ver eu me recordo rápido, tenho vontade de ler de novo, mas a biblioteca da facu nãotem.
eu vi um filme também que achei que seria horrível, mas ameeeei, até chorei SUPER HOMEM 3 o retorno,
quero ver este que me falou, sabe quantos graus fez ontem? 5,7 foi a temperatura menor em Minas Gerais, tô congelada, congelei até os sentidos, nem tô blogando, rsrsr
te adoro, bjs