terça-feira, 19 de junho de 2007


Cem anos de Perdão

Quem nunca roubou, não vai me entender. E quem nunca roubou bombons, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava bombons.Havia em Osasco inúmeras ruas, as ruas do comércio, com inúmeras e variadas lojas. Eu e uma amiguinha brincávamos de decidir a quem pertenciam as lojas. “Aquela de brinquedos é minha.” “Não, eu já disse que as de brinquedos são minhas.” “Mas essa não é só de brinquedos, vende roupas também.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas vitrines, olhando.Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa loja é minha”, paramos diante de uma que parecia um reino de doces. No fundo, viam-se lindos bolos. E, à frente, em uma prateleira bem colorida, estavam os bombons.Bem, mas isolado num canto da prateleira, estava uma cestinha com os maiores bombons da doceria. Fiquei feita boba, olhando com admiração aqueles bombons tão apetitosos, que nem embalados feita ainda não estavam. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria um bombom para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-lo. Se o vendedor estivesse ali, pediria um bombom, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia cliente à vista, ninguém. O tempo estava ruim, ninguém estava por perto. A doceria ficava no fim da rua, não passavam ônibus e os poucos carros que estavam ali eram dos funcionários das lojas próximas. No meio do meu silêncio e do silêncio do bombom, havia o meu desejo de possuí-lo como coisa só minha. Eu queria poder pegar nele. Queria comê-lo até sentir meu rosto todo lambuzado.Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar a aproximação ainda possível do vendedor ou de um cliente, vigiar os transeuntes da rua. Enquanto isso, entreabri lentamente a porta da doceria, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava entre as prateleiras e balcões repletos de guloseimas. Até chegar ao bombom, foi um século de coração batendo.Eis-me afinal diante dele. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ele ainda é mais suculento. Finalmente começo a pega-lo, tomando cuidado em arrumar os outros para que o vendedor não percebesse a retirada.E, de repente – ei-lo todo na minha mão. A corrida de volta a porta da doceria tinha também de ser sem barulho. Pela porta que deixara entreaberta, passei segurando o bombom. E então nós dois pálidos, eu e o bombom, corremos literalmente para longe de lá.O que é que eu fazia com o bombom? Fazia isso: ele era meu.Levei-o para casa, deixei-o por algum tempo na geladeira para que não derretesse e depois dei a tão esperada mordida. No meio, concentrava-se um açucarado recheio de cereja.Foi tão bom.Foi tão bom que simplesmente passei a roubar bombons.O processo era sempre o mesmo, a menina vigiando, eu entrando, pegando e fugindo com o bombom nas mãos. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.Também roubava pirulitos. Havia uma mercearia perto de casa, com prateleiras altas e compridas, o que impossibilitava a visão do caixa. No canto de uma dessas prateleiras, ficavam os pirulitos, escondidos pela cor dos pacotes, eu não via nenhum. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão dentro do pacote e tateava até sentir o plástico da embalagem. Muitas vezes, na minha pressa, eu puxava apenas o palitinho. Roubava vários que ia colocando no bolso, uns até quebrados, que eu jogava fora.Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de chocolates e de pirulitos tem cem anos de perdão. Os pirulitos, por exemplo, são eles mesmos que pedem para ser roubados em vez de perderem seu sabor quando o doce fica todo grudado na embalagem.

Clarice Lispector.

Um comentário:

Silvia /('.')\ disse...

eu nunca tinha lido este texto da Clarice, onde você achou?
é bom né? remete a infãncia, cheia de desjos e aventuras, e tudo tinha seu valor incalculável.
essa mulher é mesmo uma Deusa da literatura.